As elaborações sobre as noções de gênero e sexo reconsideraram a diferença anatômica, de um lado, e a própria subjetividade, do outro lado. A mudança de paradigma traz a ideia do ato de criação do gênero como categoria analítica. O ponto de partida permanece a posição normativa da cultura, que impõe os padrões dos sexos opostos, mutualmente exclusivos, como Lacan o lembra (Lacan, 1971b). Ou seja, cada um é definido pelo qual o outro não é. O gênero normativo funcionava com um a priori implícito da cultura e da sociedade, como “ideal normativo socialmente instituído” (Butler, 1990). Nesse contexto, o gênero terminava criando a própria subjetividade que devia existir de acordo a essas normas instituídas.

Mas essas considerações ainda não foram suficientes para dar conta da complexidade da questão do gênero. A própria noção de gênero vai ser levada para uma mudança, uma virada pela qual o gênero não vai ser mais considerado como um “princípio de polaridade atemporal”, independente das suas contingências e construções históricas, sociais, culturais e familiares. Uma rede de fatores interconectados vai ser considerada, com vários parâmetros possibilitando leituras plurais onde as dimensões do sexo, do gênero e da sexualidade, enquanto práticas potenciais, vão ser entendidas de maneira mútua, como implicadas de maneira recíproca. Através dessa decomposição da noção de gênero, um deslocamento vai ser operado onde é a noção de diferença que cresce nas teorizações. Pensar as diferenças ao libertar-se das polaridades (negro/branco, gay/straight, mulher/homem) seria a nova orientação para a psicanálise. Considerado assim, o gênero seria um “recurso simbólico” e não um dado cultural imposto e necessário. Traria a possibilidade de pensar o gênero como um processo complexo, emergente e não linear (Harris, 2005). Cada um de nos é uma interpretação única das categorias de gênero. Presente em todos os lugares, e também em nenhum lugar, o gênero fica assim definido por Goldner:

Emergente nas correntes cruzadas das políticas de família que, inevitavelmente, foram deformadas pelos requerimentos do binário de gênero, o gênero de um indivíduo poderia ser entendido tanto como encarnação de algum tipo de perda traumática quanto algum tipo de solução para essa perda (Goldner, 1991, p. 82).

          Harris (2005) vai retomar essas ideias e cunhar o termo de gênero como “montagem suave”. Apoiando-se sobre a teoria dos sistemas dinâmicos não lineares, Harris traz uma visão muito interessante da noção de gênero, com a hipótese que poderia ser constituído como atrator[1]:

O gênero poderia ser constituído como um atrator, um padrão emergente com qualidades particulares que dependem do contexto e de uma proporção de mudança e movimento. O gênero como atrator poderia ser composto ou incorporar uma variedade de subsistemas, mas esse tipo de integração também seria dependente do contexto… O gênero como atrator seria um ponto de contato onde alguns sistemas entrariam em interseção de maneira explosiva ou cooperativa: histórico, familiar, individual (Harris, 2005, p. 88).

Autor: Henry Krutzen, 2018.


[1] Ver capítulo 7 para uma explicação mais detalhada dos conceitos aqui utilizados, como sistema dinâmico não linear, atrator, auto-organização, emergente, paisagem e bacia, entre outros.

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