Redes

A noção de rede é uma noção que já entrou nos nossos modos de pensar com a chegada da internet e o World Wide Web (WWW) desde os anos oitenta. A questão é de saber como essa noção desloca de maneira radical alguns automatismos de pensar que temos sobre a noção de construção do saber e, particularmente, do saber psicanalítico. Deleuze e Guattari (1976) já tinham chamada a atenção, de um ponto de vista filosófico, sobre essa dimensão, com o conceito de rizoma.

Sabemos como a história da psicanálise está cheia de lutas internas, com a época das escolas de pensamento. Os kleinianos contra os anafreudianos, os bionianos e os kleinianos ortodoxos, a Ego Psychology contra os interpessoais, a posição entre-dois da Self Psychology, os lacanianos contra a Ego Psychology, as teorias da relação de objeto e as teorias de gênero em época mais recente, os lacanianos entre si depois da morte de Lacan, todas essas escolas e suas lutas constituíram a paisagem da psicanálise desde os primeiros “heréticos”, ainda do tempo de Freud.

Essas questões de escola e das múltiplas dissidências, que ocorreram na história da psicanálise, giram em redor de noções fundamentais que devem ou não devem ser mudadas ou adaptadas em função de vários critérios particulares a cada movimento: Édipo mais originário, estágios de desenvolvimento com variações de etapas, noção de fantasia, de posição do analista, de tipo de intervenção analítica, de Eu, de self, ou de psicopatologia. Todas essas concepções interrogam, sobre um ponto ou um outro, os fundamentos, os alicerces da teoria e da prática psicanalíticas.

Mas o modelo permanece sempre vertical, com a ideia de princípios fundamentais sobre os quais o edifício será construído e a metáfora arquitetônica, tão cara a Freud, encontra aqui sua aplicação mais resistente à mudança. Sob a Roma moderna encontra-se a Roma barroca, e sob a Roma barroca encontram-se vestígios da Roma antiga. O mais originário está em baixo, pedra fundadora ou alicerce estrutural para a construção que é sempre vislumbrada como vertical. A partir das primeiras pedras, construímos de maneira linear, vertical e progressiva, os andares do edifício conceitual. Tal foi o modelo utilizado implicitamente na construção da psicanálise. As críticas apontam para uma área, ou uma outra, ou tal subconjunto do conjunto maior, mas o princípio de construção nunca foi realmente questionado. Lacan foi talvez o pensador da psicanálise que mais se aproximou desse questionamento com a sua primeira topologia gráfica onde a noção de circuito foi destacada. O grafo do desejo apresenta uma rede simplificada com circulações permitindo seguir as vicissitudes do desejo através de alguns pontos chave pensados como estruturais. Mas Lacan não dispunha do conceito de sistema dinâmico, nessa época e, infelizmente, abandonou essas aberturas que o retorno a Freud tinha providenciado com a construção dos esquemas L e da cadeia L, inspirados pelas noções de cibernética. O estruturalismo e o Zeitgeist dos anos sessenta o levaram cada vez mais para uma formalização extrema e desencarnada da psicanálise, apesar de múltiplas referências tentando dar um lugar para uma “libra de carne” (Lacan, 1962-63).

O novo paradigma é de rede e funciona sem noção de conceito fundamental, numa revogabilidade e circulação permanente. A questão não é mais de saber quais são as ideias fundamentais mais qual é a circulação possível e como um sistema pode lembrar-se dos movimentos e dos deslocamentos pela sua própria auto-organização. Por exemplo, a noção de objeto muda de lugar para tornar-se nexo de relações. Não existe mais um mundo com uma coleção de objetos, mas os próprios objetos são redes de relações. E essas redes são aninhadas em outras redes.

            Temos como exemplo o cérebro com a rede neuronal, mas existem muitas outras redes, como redes moleculares, corporais, familiares, inter-familiares, profissionais e por aí vai. Outro exemplo é a árvore como rede entre vários elementos, das raízes ao tronco, os galhos, as folhas e já percebemos como essa rede vai conectar-se com um ecossistema, a luz do sol para a fotossíntese. Do outro lado, a árvore faz parte de uma floresta onde as raízes de umas encontram as de outras e constituem uma rede, dentro do solo e da terra. O filme “Avatar” (2009), de James Cameron, ilustra esse fato de maneira muito poética e trágica quando a árvore sagrada dos Na’vis, o povo do planeta Pandora, é destruída pelo exército dos humanos.

Ao sair do modelo vertical do edifício, nosso próprio pensamento já mudou e nossas colocações tomam um lugar dentro de uma rede, junto com os elementos observados pela nossa própria observação, como já integrada no processo onde não existe mais um observador e um observado. Claro que esta única noção de rede já muda nossa concepção da transferência e dos acontecimentos durante o encontro (ou não!) da sessão analítica. Nessa abordagem, as diferentes ciências são equivalentes e não existe mais um modelo mais fundamental, como o da física, por exemplo, para explicar o mundo, mas uma circulação permanente dentro de redes de relações de níveis hierárquicos diversos, como da célula ao tecido, ou da mente ao social, ou da química à psicologia sem que haja nenhuma prevalência de um sobre o outro. A questão vai ser de lugar e isso já implica o nível hierárquico onde um processo pode acontecer. O mesmo pode ser agora pensado das teorias psicanalíticas que, de repente, encontram-se localizadas em um novo espaço, de onde qualquer conceito pode se tornar operacional em função das coordenadas de uma situação particular, num contexto particular. Já podemos ouvir as críticas de relativismo absoluto onde “nada significa mais nada” seria proferido como signo de perda de consistência. Mas a questão não se coloca neste lugar, que já foi. O ponto é que estamos jogados num mundo cujo funcionamento cada vez mais confirma essa visão e nos convida a conseguir pensar com o pensamento de rede, em redes plurais e hierarquizadas.

Autor: Henry Krutzen, 2018

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