Queremos aqui mostrar que a mudança de paradigma operada pela psicanálise relacional não é específica de uma área só, mas corta transversalmente todas as abordagens multidisciplinares com os quais ela pode ter trocas.


Vamos escolher aqui a área das neurociências, nas suas interfaces com a psicanálise para mostrar, mais uma vez como a visão de Max Planck revela-se instigante: “Uma importante inovação científica raramente faz seu caminho vencendo gradualmente e convertendo seus oponentes: raramente acontece que ‘Saulo’ se torne ‘Paulo’. O que realmente acontece é que os seus oponentes morrem gradualmente e a geração que cresce está familiarizada com a ideia desde o início”.


Já Freud, no seu Projeto para uma psicologia científica de 1895 tinha construído um modelo sofisticado, considerando o saber da sua época, sobre o cérebro e o aparelho psíquico. Como neurologista de formação, Freud se interessava a encontrar hipóteses explicativas das afeções que ele encontrava na sua clínica, particularmente as doentes histéricas que constituíam a maioria da sua freguesia nessa época, final do século XIX.
Desde então a neurologia evoluiu enormemente e nosso propósito não é fazer um histórico da evolução da ciência neurológica. Mas, todavia, podemos destacar uma época bem recente onde passos de gigantes foram
realizados, ou seja, durante a chamada década do cérebro, entre 1995 e 2005.


Muitas ideias comumente aceitas foram reviradas de cabeça para baixo e descobertas importantes foram feitas com um ritmo acelerado. É mais ou menos nessa época que a chamada neuropsicanálise nasceu. O termo teria sido cunhado por Mark Solms, neuropsicólogo sul-africano que inaugurou vários estudos abrindo para a definição dessa nova abordagem. Solms, diferentemente dos seus colegas, se interessava nas vivências, sentimentos, afetos e emoções dos seus pacientes neurológicos. Era uma coisa nova na medida em que este tipo de abordagem nunca existia com estes pacientes porque eram considerados neurológicos, não havia necessidade de especular sobre seus estados mentais ou afetivos, já que tinham lesões e deteriorações bem definidas (Solms, 2015). Neste ponto, Solms começou a aprofundar seus estudos na obra de Freud, tanto que decidiu viajar até Londres para fazer análise e se formar no instituto da British Psychoanalytical Society.


Agora psicanalista formado no prestigioso instituto inglês, Solms começou a fazer pesquisas, junto com a esposa, sobre pacientes neurológicos, com o método psicanalítico. É precisamente aqui que uma orientação vai se destacar onde nossa questão de mudança de paradigma vai poder aparecer de maneira bem clara, salientando que aparece em qualquer área de conhecimento.

Solms fez assim algumas descobertas importantes: demostrou que o sono paradoxal não é o momento único e privilegiado dos acontecimentos oníricos (Solms, 2000), também corrigiu o erro freudiano da colocação da consciência na superfície do aparelho psíquico (Solms e Friston, 2018. Esses exemplos mostram que Solms se apoia sobre algumas hipóteses freudianas e tenta testá-las, com a tecnologia que as ciências do cérebro possuem no estado atual dos seus conhecimentos. Fazendo isso, Solms e seus colaboradores não questionam a hipótese intrapsíquica inerente à posição freudiana desde a viravolta de setembro de 1897, quando Freud abandonou sua chamada neurótica para começar a elaboração da psicanálise como sendo uma psicologia de uma pessoa.


Do outro lado, outros pesquisadores, mais ou menos na mesma época começaram a pesquisar as questões relativas à mente e cérebro, a partir de outras fontes para além do modelo metapsicológico intrapsíquico freudiano. Apoiando-se sobre a teoria do apego, formulado por John Bowlby (1969) e considerada, no primeiro tempo do ponto de vista comportamentalista, para depois ser incluída nas ciências cognitivas, esses pesquisadores (Schore, 1994, 2012, 2019; Siegel, 2001; McGilchrist, 2009; Marks-Tarlow, 2012; Cozolino, 2014;Hill, 2015; Badenoch, 2017) produziram um avanço na compreensão do nosso problema.

Deslocaram a questão para as emoções e a nova teoria do apego vai ter respaldo nos estudos sobre afetos e emoções que vão ter um desenvolvimento enorme desde o início da década de noventa. Além das descobertas ao redor da plasticidade cerebral, dos neurônios espelhos, dos tipos diferenciados de memória. Recentemente (Schore, 2019) foram feitas descobertas sobre como os cérebros reagem em relação à outros cérebros, desde o início da vida, e que as interações, relações entre cuidador e infante são a fonte, não apenas do nosso desenvolvimento emocional e afetivo, base das nossas capacidades cognitivas, mas que, literalmente, essas trocas originárias elaboram o cérebro de cada um.
Com outras palavras, temos todos um cérebro diferente e este cérebro é o resultado das interações que tivemos com nossos cuidadores originários, num primeiro tempo, e com todas nossos relacionamentos ulteriores num segundo tempo.


Neste contexto, estamos, sim, na mudança de paradigma que a psicanálise relacional desenvolve desde o fim dos anos noventa. Podemos ver, através dessa pequena comparação entre as pesquisas de Solms e seus colaboradores, de um lado, e dos achados dos autores da neurobiologia interpessoal, do outro lado, como Thomas Kuhn (1962) tinha razão quando falava que nenhuma demonstração ou formulação poderá convencer ninguém da verdade ou não de tal ou tal abordagem. Só o tempo dirá!

Autor: Henry Krutzen, 22 de outubro de 2020

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *