Taylise Spolti1
RESUMO
O objetivo deste trabalho é analisar a ideia de Winnicott sobre o colapso como um fenômeno potencialmente benéfico, desde que acompanhado de apoio analítico adequado. Baseando-se em seu texto ‘O medo do colapso’, isso é visto como algo que já ocorreu no início da vida e agora “assombra” a paciente; este artigo explora como o enfrentamento e a integração dessa experiência no presente podem facilitar o amadurecimento do indivíduo. Para isso, numa abordagem qualitativa, realizamos um estudo de caso, apoiado na carta de uma paciente à sua psicóloga. O texto destaca a importância da relacionalidade, incluindo a interação entre paciente e terapeuta, bem como o suporte de familiares e amigos. O resultado sugere que estas relações são cruciais para proporcionar uma sustentação psíquica no tempo e no espaço que apoie o indivíduo a lidar com o seu medo, promovendo seu amadurecimento psíquico e emocional.
Palavras-chave: Colapso; Holding; Relacionalidade; Vulnerabilidade.
Introdução
A partir do trabalho de Winnicott (1994) e do movimento da psicanálise relacional, podemos encontrar uma perspectiva que tem como foco a relacionalidade, que mantém em mente a relação como fonte da ação terapêutica, em consonância com Philip Bromberg (2011, apud KRUTZEN, 2023).
Nessa perspectiva, um texto que sempre nos convidou à reflexão foi ‘O medo do colapso’ de Winnicott. Nele, o autor apresenta a intrigante ideia de que o colapso pode referir-se a algo já ocorrido no início da vida do indivíduo. Esse ‘algo’ que mantém o indivíduo “acorrentado” ao passado e atemorizado com o futuro precisa, portanto, ser experienciado e integrado no presente, no “aqui e agora”, em um ambiente seguro que proporcione ao indivíduo a sustentação que inicialmente não lhe foi oferecida.
Afirmamos com Winnicott (1994) que a nova provisão ambiental traz a possibilidade de colocar essa experiência em seu devido lugar, no passado. Assim, a proposta deste trabalho é abordar o colapso como uma solução radical, propiciadora de recomeço, a partir da ideia de que um colapso físico ou mental pode ser benéfico para a paciente, mas apenas se acompanhada de compreensão e insights analíticos. Contudo, Winnicott (1994) ressaltou que, para muitos pacientes, a opção de um colapso que resulte em hospitalização psiquiátrica seria um luxo inviável. Mas é interessante notar que a vulnerabilidade, própria da condição daquela que colapsou e sua consequente regressão à dependência, pode oportunizar um novo começo. Logo, de um modo diretivo, sintetizamos essa ideia numa questão direcionadora deste artigo: qual é a importância do colapso na vida de alguém?
Localizamos a relacionalidade nesse processo, tanto a relação entre paciente e analista, quanto com familiares e amigos, colocando em destaque o papel de todos aqueles que se disponibilizam a amparar a paciente, com sua presença, para que ela, pela primeira vez, tenha sustentação no tempo e no espaço.
Compreendemos que ao recebermos uma paciente em “cacos”, após a queda total de suas defesas e em caos angustiante, podemos vislumbrar uma oportunidade de continuidade do ser e, assim, transmitir à paciente o brilho da esperança presente em nosso próprio olhar. Para tanto, trazemos a metáfora de Balint (2014) sobre as substâncias primárias, como a terra e a água, e seu uso na prática clínica com pacientes colapsadas.
Diante desse quadro, para responder à questão fundamental, a metodologia empregada neste artigo consiste em um estudo de caso pela abordagem qualitativa que, segundo Flick (2009), enfatiza a subjetividade dos participantes e integra a reflexão dos indivíduos estudados como parte essencial do processo de pesquisa; portanto, visa descrever e analisar a experiência clínica de uma mulher por meio da utilização de uma carta que enviou à sua psicóloga, a fim de compreendermos as estruturas psicológicas latentes de sua experiência – devido ao espaço deste artigo, os excertos da carta estão distribuídos no desdobramento do texto. Assim, prosseguimos descrevendo o caso e analisando o dado ao longo do espaço-tempo.
Descrição do Caso
- Situação Inicial
Helena2 nasceu em um lar repleto de brigas, com instabilidades de diversas ordens, principalmente financeira e psicológica. Sua mãe era depressiva e exibia comportamentos perversos, como a paciente expressou na carta: “assim é minha mãe, como um abutre, como um urubu na sua carniça, sugando minhas forças, minha paciência e meu amor”, Helena (2004, 3). Enquanto o seu pai era delirante e agressivo.
Desde os primeiros meses de vida, Helena demonstrava pouco apetite e raramente chorava, podendo passar muitas horas consecutivas no berço, sem manifestar desconforto, sendo uma bebê que “não incomodava”.
Durante a infância, suas interações sociais eram reduzidas ao ambiente escolar, já que seu pai frequentemente viajava e sua mãe a queria sempre por perto, impedindo-a de brincar na casa de amigos e primos ou de recebê-los em sua própria casa. Ela era muito ansiosa, roía as unhas das mãos e dos pés. Aos 8 anos, Helena teve a primeira de três convulsões. Apesar de múltiplos eletroencefalogramas, para investigar as causas, os neurologistas não identificaram qualquer fator orgânico para as crises, atribuindo-as ao estresse. Sendo assim, ela fez uso de psicofármacos até os seus 16 anos, para aliviar sintomas.
Helena também apresentou problemas dermatológicos graves, distúrbios gástricos e enurese noturna até os 8 anos. Sua família mudava de cidade frequentemente e de forma impulsiva, tanto que, aos 19 anos, ela já havia se mudado mais de vinte vezes, resultando em um sentimento doloroso de não-pertencimento, como é revelado já no início da carta, onde ao invés de colocar o nome de sua cidade e então a data, ela escreve: “Helena, 25 de março de 2004”. Frequentemente se descrevia como “um peixe fora d’água“, sentindo-se como se houvesse uma “ferida sangrante no coração” que causava uma dor profunda e que parecia incurável.
Foi esse o sentimento que a levou a buscar ajuda psicológica em 2004, quando já estava com 21 anos. Sobre seu estado naquela fase, ela descrevia: “Às vezes, é difícil identificar o que estou realmente sentindo, se é angústia, medo, culpa etc. Dificuldade também encontro em apaziguar minha situação interior, acalmar-me sozinha. Não aprendi isso ainda. De certa forma, é difícil me identificar. Quem sou eu? Como sou?” Helena (2004, 1).
Durante esse processo terapêutico, por indicação de sua psicóloga, Helena leu o livro “Mãe e Filha, O Eterno Reencontro” (BASSOFF, 1994), que a impactou profundamente e a motivou a escrever essa carta para sua psicóloga.
- O colapso
Após a psicoterapia, a paciente foi expulsa de casa3, mudou de cidade e, dois anos depois, casou-se. Ela formou a família que sempre sonhara: estava bem-casada, teve uma filha e, pela primeira vez, não se sentia mais como um peixe “fora d’água” – ela passou a experimentar o tão sonhado sentimento de pertencimento. Helena tinha um verdadeiro lar.
Entretanto, em 2018, em uma fase que parecia estável e tranquila, seu psiquismo começou a desmoronar. Ela sofria de falta de ar, angústia esmagadora, culpa dilacerante e o medo da loucura a dominava em um insuportável sentimento de “cair para sempre”.
Ela descrevia sensações corporais torturantes de dor, como se seus ossos estivessem sendo esmagados. Emagreceu rapidamente e perdeu a capacidade de dormir. Não conseguia ficar longe do marido e perdeu a habilidade de ser útil: parou de dirigir, cozinhar, cuidar da filha e nem sequer conseguia atender alguém no portão de sua casa. Suas defesas haviam desabado, e o auto apoio, que havia forjado para sobreviver, não mais a sustentava.
Helena encontrava-se totalmente vulnerável e implorava para ser internada em um hospital psiquiátrico, repetindo dramaticamente que não iria aguentar a sua condição. Diante disso, o seu marido assumiu um papel paternal, oferecendo segurança e amor incondicional; ele parou de trabalhar, pois ela precisava dele em tempo integral e decidiu levá-la ao psiquiatra, que prescreveu medicação e recomendou iniciar nova psicoterapia.
Aos poucos, as crises de pânico foram cedendo e as dolorosas e perturbadoras sensações corporais foram se dissipando. Ela começou a sentir sono novamente, a ter fome e a experimentar paz. Helena havia colapsado e experimentado o desespero de estar em “cacos”, mas agora enxergava uma luz; havia esperança. Sua psicóloga, sua filha, seu marido e seus amigos lhe mostravam o que ainda poderia vir a ser; foi essa relacionalidade que ofereceu sustentação, a qual lhe faltou em seu primeiro ambiente. Esse apoio foi vital, uma condição essencial para que continuasse a existir e para que seu desenvolvimento emocional fosse retomado. Como na arte do kintsugi, em que o pó de ouro integra os cacos e cicatriza as falhas – foi na relacionalidade que a nova obra se fez.
Análise do Caso Clínico
O ambiente em que Helena cresceu era demasiado intrusivo e violento, provocador de diversas reações a essas intrusões frequentes; portanto, interruptor da continuidade de seu ser. Sem base segura e cuidado adequado, Helena experimentou o que Winnicott (1994) chamou de agonias impensáveis, como observamos no seguinte trecho: “Imagine uma menina segurando uma pombinha, olhando repentinamente parece lindo, ‘que carinho’, ‘que cumplicidade’! Mas, se pararmos para prestar atenção, essa ave está ansiosa por voar, mas a garota não permite. Então o animalzinho faz forças, porém, à medida que se esforça, a mocinha a aperta ao ponto de estrangulá-la. Essa menina possessiva prefere a pobre ave morta junto dela a vê-la voar à distância”. Helena (2004, 2).
Pudemos constatar que, para sobreviver nesse entorno hostil, onde era impossível se entregar a estados relaxados, ela organizou para si um self-holding (WINNICOTT, 1994), que a manteve razoavelmente estável durante muitos anos, como podemos inferir “…muitas vezes, antes de dormir, tenho que ser mãe de mim mesma e dizer: Eu entendo você, eu amo você, você foi ótima hoje, não faça mais isso! Neste momento, não fui capaz de conter minhas lágrimas, pois estou sozinha! Preciso mudar, amadurecer, tomar conhecimento da causa real dos meus problemas, ansiedade, insegurança e medos, para enfim, curá-los”, Helena (2004, 4); contudo, sabemos, pela psicanálise de Winnicott (2021), que a verdadeira sustentação precisa necessariamente vir do outro.
Seguindo com a proposta de Balint (2014), em seu livro “A Falha Básica”, propomos pensar em uma nova provisão ambiental, baseadas na sua metáfora com as substâncias primárias, água e terra. Para tanto, salientamos a qualidade de serem indestrutíveis e essenciais.
Em um aterrorizante “cair para sempre”, mencionado por Winnicott (1994), é a falta da terra que precipita a queda, em sua ausência não há amparo e anteparo. Refletindo sobre a substância água, percebemos que essa, mais que sustenta o peixe, ela o envolve; é o seu suprimento de ar, sua fonte insubstituível de vida. Os instantes vividos sem essa água geram sensações terrivelmente angustiantes, pois anunciam o aniquilamento de sua existência. Da relação água-peixe, caminhante-terra e analista-paciente, Balint (2014) esclarece que o entorno deve aceitar e consentir em sustentar e carregar o paciente, assim como a terra ou a água.
Curioso é pensar que somente quando Helena pôde mergulhar em águas calmas, quando não era mais como um “peixe fora d’água”, ela colapsou. Como se soubesse, de alguma forma, que essas águas poderiam ser seu lar terapêutico. A provisão ambiental no setting terapêutico e em sua casa, lhe oportunizaram recomeçar. Esse cenário, estritamente sensível às suas necessidades, serviu como ambiente facilitador para retomar o seu amadurecimento.
A falha básica, segundo Balint (2014), é menos sobre interpretação e mais sobre holding, pois não apresenta a estrutura de um conflito, não clama por resolução, mas sim de integração de suas partes desconexas – o anseio é por reparação. Assim, “ao contrário do insight, que é resultado de uma interpretação correta, a criação de uma relação adequada é decorrente de uma “sensação”, enquanto o insight está relacionado ao “ver”, a “sensação” está relacionada ao tato, isto é, com a relação primária”, elucida Balint (2014, p. 162).
Portanto, os ingredientes que podem preencher essas falhas e cicatrizar as feridas, estão na sensibilidade afetiva e na compreensão – isso se trata mais de o analista se deixar afetar do que insistir em uma neutralidade fria que, por vezes, pode ser inclusive retraumatizante. A paciente sente o estado de sua analista e deseja conexão com seu mundo interno, ela busca conhecê-lo, senti-lo (ARON, 1991). Desse modo, Balint (2014) exorta a não termos limites muito nítidos no início do tratamento, assim como não há limites nítidos entre o peixe e a água.
As pessoas traumatizadas dizem que estarem sozinhas, sem testemunhas empáticas, sem reconhecimento e consolo, foi bem pior do que os próprios eventos traumáticos (KRUTZEN, 2023); por isso a analista vem fazer companhia, testemunhando uma história contada para além da linguagem. Ela oferece reconhecimento de toda uma história, assim ajuda a paciente a encontrar a sua própria e única individualidade. Com essas pacientes, a principal tarefa da analista é a de não interferir, de não perturbar sem necessidade, mas de se manter presente e disponível. O nobre trabalho psicanalítico é deixar que a paciente apenas ‘seja’, ou melhor, que continue sendo, apesar de nós, mas por causa de nós. Somente depois de certo tempo, o verdadeiro self poderá sair de sua cápsula de proteção, emergindo espontaneamente e curando-se (BALINT, 2014). E é apenas quando esse ousa entrar em contato com a realidade que pode amadurecer e continuar por si mesmo criativamente (WINNICOTT, 2019).
Deste modo, um dos objetivos do tratamento é inativar a falha básica, criando condições para sua cicatrização. E esse poder cicatrizante está, justamente, na relação; é apenas na relacionalidade que o novo começo pode acontecer (BALINT, 2014). No entanto, enfatizamos a responsabilidade da paciente nesse processo, pois a criação e a manutenção dessas condições são da dupla (paciente e analista). É essencial que ela esteja ciente disso desde o início.
Anotações Finais
Do mesmo modo em que a construção do self ocorre dentro do contexto da relacionalidade, será na relação analítica e na relação com a família e amigos que as mudanças poderão acontecer. Por mais difícil que tenha sido para Helena experienciar o colapso, foi uma oportunidade que o presente lhe deu para recomeçar. Finalizamos, a registrar, que nesse processo há o luto do ideal não recebido e a aceitação de que uma falha básica (um trauma relacional) existiu e que mesmo após a cicatrização certamente ficarão as marcas. Essas marcas falam da sua luta para sobreviver – o modelo que temos em mente é um tipo de kintsugi psicanalítico; pois, compreendemos com Krutzen (2021): há que se valorizar as fendas – Nessa arte ancestral japonesa se faz a reparação de uma cerâmica quebrada com pó de ouro, e assim, o objeto ganha seu valor. Nas palavras do autor (p. 236), “adornado pela sua cicatriz, conta a sua história e pode ensinar para nós que um “acidente” não é o fim, mas pode ser o início de algo mais belo”. Bessel Van Der Kolk (2014, apud KRUTZEN, 2021), especialista em traumas, aconselha que ninguém guarde segredos sobre os jeitos que encontraram para sobreviver.
A história de um, salvo suas particularidades, pode ser a história de muitos. Assim é a história de Helena, tendo se descolado do tempo infinito do trauma, pôde enxergar o seu futuro pelas lentes da esperança. Ela vislumbra no “aqui e agora” muitas possibilidades do devir.
Referências
BALINT, Michael. A Falha Básica: aspectos terapêuticos da regressão. 2.ed. São Paulo: Zagodoni, 2014.
FLICK, Uwe. Introdução à pesquisa qualitativa. Tradução Joice Elias Costa. 3 ed. Porto Alegre: Artmed, 2009.
KRUTZEN, Henry. Psicanálise Relacional, Neurociências e Psicologia do Desenvolvimento: interdisciplinaridade interna e externa para a psicanálise. São Paulo: Lux, 2021.
KRUTZEN, Henry. Sobre Trauma: psicanálise e transversalidade. 1.ed. São Paulo: Zagodoni, 2023.
ARON, Lewis. The patient’s experience of the analyst’s subjectivity. Psychoanalytic Dialogues, v. 1, n. 4, p. 475-507, 1991.
WINNICOTT, Donald W. O medo do colapso. POA: Artmed, 1994.
WINNICOTT, Donald W. O brincar e a realidade. São Paulo: Ubu Editora, 2019.
WINNICOTT, Donald W. Da pediatria à psicanálise. São Paulo: Ubu Editora, 2021.
Taylise Spolti, Psicanalista Relacional em Curitiba. Especialista em Psicanálise Teórica e Clínica, com formação em Mindfulness e Psicoterapia Breve de Orientação Psicanalítica na Teoria de Donald Winnicott.
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