Quando Daniel Stern publicou O mundo interpessoal do infante (1985), trouxe muitos novos conceitos numa abordagem renovadora para pensar o desenvolvimento do infante e da criança pequena. Daniel Stern teve um papel determinante nos estudos que se multiplicaram sobre as relações mães/infantes. Permanece enigmático o fato da sua ausência nas referências psicanalíticas dos países de língua latina. Por exemplo, nos dicionários mais correntes de psicanálise francesa (Kaufmann, 1993; Roudinesco & Plon, 1997), o seu nome não aparece sequer!

Stern vai introduzir a observação direta das crianças e de suas mães (Vamos chamar de “mãe” qualquer ser humano em posição de cuidador principal do infante, independentemente de qualquer sexo ou gênero. Consideraremos uma “posição materna” neste contexto). Vai assim diferenciar dois tipos de infantes: o infante clínico (clinical infant) e o infante observado (observed infant). A criança clínica é essa criança que é o resultado de uma construção teórica, elaborada pelos psicanalistas desde Freud, uma teoria oriunda da prática clínica com, principalmente, pacientes adultos (Erikson, Spitz, Mahler). Essa criança é o resultado do encontro entre pessoas que cresceram até tronarem-se pacientes analíticos, de um lado, e, analistas que têm a própria teoria sobre o desenvolvimento do ser humano do outro lado (Stern, 1985). Mesmo no caso de teorias elaboradas por analistas que trabalharam com crianças, de maneira privilegiada, como Klein ou Dolto, as conceptualizações delas entram no conjunto das teorias construídas a partir de noções sofisticadas que são o resultado de anos de elaboração das hipóteses freudianas. As eventuais observações já estão filtradas por essa história conceitual complexa. Do outro lado, os psicanalistas que vão estudar o desenvolvimento do infante como infante observado vão privilegiar a observação experimental. Isso não significa uma “neutralidade” do observador, num modelo científico que seria aquele dos sonhos de Freud, na sua época de cientista. A questão da vida intrapsíquica, que não pode ser alcançada de maneira direta, deve encontrar o lado da observação. Quais são as aptidões do infante? Como pode relacionar-se com a mãe? Quais são as condições onde o encontro funciona para ambos, ou falha? Quem traz o que? Como o infante e a criança pequena começam a desenvolver o senso de self? Stern concretiza uma nova posição do analista em frente a essas questões, uma posição que vai juntar essa dimensão de observação com a experiência clínica para propor outro tipo de construção que vai questionar e, às vezes, desmontar alguns dos dogmas da psicanálise clássica.

Lá onde a criança clínica mostra uma vida através das construções dos analistas mais criativos, construções que, naturalmente provêm de eventos na transferência, lembranças sujeitas a todo tipo de distorções (lembremos de Freud e do abandono da sua neurótica), a criança observada traz limites, fronteiras para poder se pensar o desenvolvimento. Stern sublinha que esse tipo de abordagem não era pensável na psicanálise até os anos setenta, onde os estudos se iniciaram. Antes, os estudos do desenvolvimento da criança observada eram limitados a questões físicas (sentar, andar) ou perceptivas, sem nenhuma dimensão social e relacional, enquanto a criança clínica era pensada em termos de desenvolvimento afetivo, em relação com a mãe, o desejo, as angústias e outros fenômenos intrapsíquicos. Essas duas crianças evoluíam em mundos diferentes sem nenhuma relação com seu vizinho. Mas isso mudou e as questões começaram a misturar-se. Como o fato de enxergar, ouvir, tocar pode ter uma importância dentro da relação com o outro, e como esse desenvolvimento é vinculado, de maneira necessária, à presença deste outro, sabendo que isso não invalida as limitações que os órgãos e membros do nosso corpo comportam.

A infância clínica é uma construção feita a partir dos encontros entre analista e paciente. Constitui uma história, como resultado deste encontro e implica então uma narrativa que pode assim definir uma verdade histórica, revogável a qualquer momento em função das vicissitudes dessa própria narrativa (Schafer, 1976, 1978, 1983). Isso significa que “a vida-real-enquanto-experiência torna-se um produto da narrativa, e não o contrário” (Stern, 1985).

Mas, Stern continua, a criança observada é também uma construção. A própria descrição dos movimentos, olhares, sorrisos e outros elementos considerados, não revelam muito sobre a qualidade sentida (felt quality) desses comportamentos como experiências integradas num processo vital. Aqui, qualquer tentativa de “fazer inferências” a partir desses dados nos coloca de volta à criança clínica e nossa referência última permanece nossa própria vida como experiência e as narrativas que construímos para dar sentido a ela, ou seja, o que chamamos de nossa história. O ponto novo é a    integração dessas duas abordagens numa nova posição que permite aos analistas circular entre várias vertentes sem entrar nas antigas “guerras de religião” entre uma teoria ou outra como “melhor”.

Aplicando este método, Stern destaca um primeiro ponto importante: o infante vai ser pensado em função da sua experiência do self e do outro. Seguindo Winnicott, Klein e Mahler sobre esta abordagem, Stern insiste em focalizar os estudos sobre a díade mãe/bebê. A interação está presente, na díade, desde o começo, pelas trocas de olhares e pela presença/ausência da voz como comportamentos sociais originários. Os estudos sobre as trocas de olhares entre os infantes e suas mães vão mostrar a surpreendente importância da atividade do infante, do controle que exerce sobre o início, a continuação e o corte de contato social com a mãe (Stern, 1985).

Muitas teorias psicanalíticas oferecem visões do desenvolvimento em estados, começando com Freud/Abraham (estados da libido), e continuando com Erikson e Spitz (mudanças na estrutura do ego) ou Mahler (simbiose e separação), para citar os mais famosos. Vimos que, na ideia de Abraham, esses estados eram pensados também em função da psicopatologia, através da noção de fixação. Os pontos de fixação permitiriam identificar o momento e o lugar de origem da patologia. Esse é o modelo retrospectivo, caracterizado por uma volta no tempo. Stern vai pensar as coisas sem estados do desenvolvimento como passagens obrigatórias e vai concordar, sobre esse ponto, com Bowlby para construir um modelo prospectivo, que ele chama de normativo.

Isso tudo não significa que não existem fases de desenvolvimento. A questão é pensar essas fases a partir de uma perspectiva diferente, não como problemas clínicos, mas como tarefas implicadas pela necessidade de encarar situações que o crescimento das capacidades físicas e mentais do infante apresentam como novos desafios. E é a díade que vai atravessar esses momentos e lugares como próprias mudanças do sistema constituído pelo movimento de auto-organização (ver capítulo 7). Stern vai também integrar o trabalho de Bowlby, sobre o apego, nas suas elaborações:

A teoria do apego, como cresceu a partir da sua origem na psicanálise e na etologia até incluir os métodos e perspectivas da psicologia do desenvolvimento, chegou a abranger muitos níveis de fenômenos. A diferentes níveis, o apego é uma sequência de comportamentos do infante, um sistema motivacional, uma relação entre a mãe e o infante, uma construção teórica e uma experiência subjetiva para o infante na forma de “modelos de trabalho” (Stern, 1985, p. 25).

          Juntando os lados da teoria tradicional da psicanálise e a teoria do apego, Stern vai construir, como hipótese de trabalho, uma visão do sentido subjetivo do self em desenvolvimento. Com o crescimento de novas aptidões físicas e mentais, a auto-organização do sistema atravessa reorganizações do self segundo “perspectivas subjetivas”, momentos emergentes, pulos “quânticos” que Stern vai descrever no seu trabalho: o sentido de um self emergente (sense of an emergent self), o self físico que nomeia sentido de um self nuclear (sense of a core self), o sentido de um self subjetivo (sense of a subjective self), e o sentido de um self verbal (sense of a verbal self). Esses níveis do self são considerados como funcionado ao mesmo tempo em todas as “áreas da relacionalidade” (domains of relatedness) humana. Claro, nossa vida social privilegia o self verbal, deixando implícitos, no melhor dos casos, os três outros níveis. Veremos como essa concepção já antecipa a noção de inconsciente implícito. Para Stern, essas áreas de relacionalidade, uma vez operacionais, funcionam ativamente durante todo o desenvolvimento e o resto da vida. Mas não vamos aqui especificar e detalhar a teoria de Stern. Temos mais interesse em mostrar como a posição que ele ocupou mudou, de maneira significativa, a história da psicanálise e teve consequências importantes sobre as teorias e construções do ponto de vista terapêutico ligado às concepções clássicas do desenvolvimento.

          Quais são as implicações dessa concepção para a teoria e prática analítica?

          Quando fala do self nuclear, Stern traz um conceito chave na sua visão do desenvolvimento: as Representações de Interações Generalizadas (RIG):

O episódio generalizado não é uma lembrança específica. Não descreve um evento que, na verdade, aconteceu exatamente dessa maneira. Contém múltiplas lembranças específicas, mas, como estrutura, ele está mais perto de uma representação abstrata, como este termo é utilizado habitualmente na clínica. É uma estrutura sobre o provável decorrer dos eventos, baseada em experiências médias. E, segundo isso, cria expectativas de ações, de sentimentos, de sensações, que podem ser encontradas ou negadas Stern, 1985, p. 97).

          Essa ideia vai ser testada e os estudos recentes vão poder abrir novas hipóteses sobre o desenvolvimento a partir dessa concepção que integra elementos para uma nova metapsicologia/ topologia, com apoio nos sistemas dinâmicos não lineares e a auto-organização, por exemplo.

          Alguns pontos da teoria clássica já podem ser reconsiderados a partir dos resultados desses primeiros estudos.

          Um dos primeiros pontos é a noção freudiana de barreira de proteção, que seria uma barreira contra a invasão de estímulos, protegendo assim o infante com um tipo de “escudo protetor” (Freud, 1920g). Os estudos de Wolff (1966) mostram que essa barreira não existe. O recém-nascido, num estado de “inatividade alerta”, capta com os olhos e os ouvidos tudo o que o meio ambiente providencia, até um certo ponto melhor possível (optimal). Em cima deste ponto, a estimulação será evitada pelo infante, e os parâmetros de controle são da ordem dos níveis de estimulação e da duração, definindo e separando assim o tolerável do intolerável. Ou seja, o infante relaciona-se com o meio ambiente da mesma maneira que qualquer um de qualquer idade, em função das suas possibilidades de regulação. Naturalmente, o limiar vai variar de uma pessoa para outra, em função de vários critérios possíveis. O ponto permanece que “relação do infante com a estimulação externa é qualitativamente igual durante a vida toda” (Stern, 1985).

A barreira de proteção é um conceito central, porque é uma instância, no caso da infância, do princípio do prazer e de constância de Freud (1920g). Nessa visão, o crescimento da excitação interna é experimentado como desprazer, e um dos maiores papeis de todo o aparelho mental é a descarga de energia ou excitação, de uma maneira tal que o nível de excitação dentro do sistema psíquico é sempre minimizado. E como, aos olhos da psicanálise clássica, o infante não tem (nem se sabe se tem) um aparelho mental suficiente para descarregar a excitação que o mundo externo poderia lhe impor, a barreira de estímulo é necessitada para proteção (Stern, 1985, p. 233).

          O infante tem capacidade de se virar com as estimulações do mundo externo, com a ajuda da mãe.

          Um segundo ponto é a reconsideração do papel primordial da zona oral nas questões do desenvolvimento. O enfoque sobre a boca, como zona erógena protótipo de uma primeira etapa, como na teoria de Freud/Abraham ou Erikson, não foi confirmada pelos estudos levadas para demostrar a prevalência dessas zonas no desenvolvimento. Cada vez mais, o que está aparecendo, como alvo primeiro da vida do infante, é a relacionalidade primeira, que não precisa de apoio fisiológico, como no caso da teoria clássica dos estados, e não constitui assim um alvo secundário em relação aos dados mais ligados a funções do organismo. O infante é pelo menos igualmente interessado nos dados visuais e auditivos, se comparados aos elementos vinculados a alimentação, amamentação e zona bucal. Isso não significa que a zona oral perde todo papel nas questões do desenvolvimento infantil, mas que fica inserida, juntos com outros pontos, num conjunto maior de fatores de crescimento.

          Outro elemento importante é a descoberta das coordenações inter-sensoriais (cross-sensory) de informações, como por exemplo entre o ouvido ou a visão e o aparelho muscular. A boca tem um papel bem secundário na maneira com que o infante vai ao encontro do mundo, olhando, ouvindo, e se movimentando nos limites das suas possibilidades. Claro que o papel da alimentação permanece importante, mas sobretudo na medida que é um momento privilegiado, numa atividade vital para o aparecimento de uma relacionalidade emergente. O rosto da mãe, perto do rosto do infante, durante a amamentação, este face-a-face, é uma das mais originárias relações sociais, nessa construção. E essa dimensão tem mais consequências do que a noção de aumento da excitação que vai ser abaixado para o nível mínimo com a saciedade, depois de ter ingerido o leite.

          Um terceiro ponto concerne aos princípios do prazer e da realidade. Freud postulou que, no infante, o princípio do prazer seria dominante, com a instância do id preponderante. Do seu lado, o eu seria quase inexistente e precisaria de tempo para se desenvolver e o princípio de realidade tomar seu lugar. Isso aconteceria durante os primeiros meses de vida do infante, de maneira progressiva.

          Mas os estudos da criança observada vão mostrar outra coisa! O que chama nossa atenção é a grande quantidade de comportamentos, no infante, que, antigamente, eram considerados como ligados às pulsões do Eu, como “padrões de exploração, curiosidade, preferências perceptivas, buscas de novidades cognitivas, prazer na capacidade de domínio e até apego”. Stern aqui considera três problemas:

  1. Uma pergunta: será que a teoria clássica da libido, com as zonas erógenas e a passagem de uma zona para outra, com todas as dificuldades e destinos dessas mudanças, ajudou a entender melhor o infante atual? Responde: “Não!”. Os estudos não demostraram a operacionalidade dessa teoria. Agora, precisamos de uma teoria da motivação e essa vai ter que ser construída com outras noções que podem tomar contas dos dados fornecidos pelas descobertas sobre infantes, como por exemplo a noção de sistema (Thelen & Smith, 1993, 1994) ligado ao apego (Bowlby, 1969). A questão se desloca para uma pluralidade de elementos interconectados e uma concepção privilegiando apenas um único sistema motivacional não consegue dar conta de todos os dados disponíveis. Vamos ver como os conceitos seguintes vão se revelar muito úteis para tomar conta desses novos dados fundamentais:

Precisamos entender como os sistemas motivacionais emergem e entram em interações e quais são as relações de hierarquia entre eles (Stern, 1985, p. 45).

  • A questão das pulsões do eu. Depois do grande debate sobre as pulsões do eu nos anos cinquenta e o que fazer com esse conceito, os estudos sobre infantes deslocaram o problema para um outro lugar. Como vimos no ponto anterior, não podemos mais limitar o processo do desenvolvimento ao jogo de duas pulsões, de vida e de morte, e precisamos de um pensamento que ofereça uma visão mais ampla da organização dos elementos motivacionais no sistema. Os estudos mostram as funções mentais emergentes dos infantes de maneira clara: “a memória, a percepção, as representações “amodais” (não simbólicas), especificações de invariantes e por aí vai”. “Para a criança, o ato de percepção tem a sua própria força motivacional e, invariavelmente, cria prazer e desprazer.”
  • O terceiro problema apontado por Stern é a questão da prevalência do desenvolvimento do princípio do prazer e do id sobre o eu e o princípio de realidade. O que aparece agora é que as duas instâncias, juntas aos dois princípios, têm um desenvolvimento paralelo desde o começo da vida.

Enfim, um outro ponto destacado é uma crítica de um postulado, muito comum nas teorias psicanalíticas, de um período originário de indiferenciação entre o infante e a mãe. Margaret Mahler (1968) postula um período de simbiose entre a mãe e o infante, que vai evoluir para uma individuação progressiva. Tanto os autores relacionados à Ego Psychology, nos Estados-Unidos, quanto os Ingleses da relação de objeto, consideram o crescimento da instância do eu num segundo tempo, com um primeiro tempo de indiferenciação originária.  Winnicott fala da dependência total e da não separação entre o objeto e o não eu (not me) que vai advir de maneira progressiva. Considera também uma tendência inata ao desenvolvimento, “que corresponde ao crescimento do corpo e ao desenvolvimento gradual de certas funções” apesar de acrescentar a necessidade de um ambiente com “condições suficientemente boas” (Winnicott, 1958). Veremos (Thelen & Smith 1993, 1994) que não é por aí! Não existe um programa inscrito nos genes ou no organismo para o desenvolvimento, da mesma maneira que não há nenhum período de simbiose, “autismo” ou indiferenciação no recém-nascido.

Autor: Henry Krutzen, 2018

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