A tão aguardada série Alien: Earth, de Noah Hawley, retoma a clássica franquia que combina horror e ficção científica, dessa vez com o xenomorfo chegando em nosso planeta natal. Mas a série sugere um terror muito mais profundo e insidioso do que apenas a sobrevivência contra uma criatura letal. Ambientada em um futuro próximo, onde corporações todo-poderosas disputam a imortalidade, a série parece tecer uma complexa tapeçaria de temas que ressoam com questões contemporâneas e históricas, notavelmente o colonialismo, o trauma e as feridas de uma infância interrompida.
Este texto propõe uma análise de Alien: Earth através das lentes do colonialismo alienígena, do trauma, da reparação, da figura da criança mal acolhida e da adultização infantil. A série, ao explorar a exploração de espécies alienígenas, reflete e critica a lógica da colonialidade, um processo intrinsecamente ligado ao domínio da técnica que, historicamente, permitiu a exploração humana e a construção de etnografias para subjugar o “outro”.
A colonialidade e a etnografia do alienígena
A história do colonialismo é também a história do desenvolvimento de “técnicas” de observação e classificação. A etnografia, nascida no seio da antropologia, foi muitas vezes uma ferramenta do poder colonial, um método para compreender – e, consequentemente, dominar – outras culturas. Ao categorizar, descrever e analisar os costumes, crenças e estruturas sociais do “outro”, o colonizador criava uma hierarquia de conhecimento onde a sua própria visão de mundo era a norma, e a do colonizado, o desvio exótico a ser “civilizado” ou explorado.
Em Alien: Earth, vemos um paralelo direto dessa lógica. A empresa Weyland-Yutani e suas corporações rivais não buscam um contato pacífico ou uma compreensão mútua com as formas de vida extraterrestres. Elas as veem como recursos, espécimes a serem capturados, estudados e, por fim, transformados em tecnologia ou armamento. A “etnografia” corporativa do Xenomorfo não visa o diálogo, mas a dissecação, a apropriação de suas características biológicas para fins lucrativos. A técnica – naves espaciais avançadas, laboratórios de contenção, armamento de ponta – é o que permite essa exploração, assim como as caravelas, os mapas e as armas de fogo permitiram a expansão colonial europeia.
O Xenomorfo, nesse contexto, é o “outro” radical, a representação máxima da natureza indomável que se recusa a ser colonizada. Sua biologia parasítica e sua violência irredutível podem ser lidas como uma resposta brutal à tentativa de dominação, uma força da natureza que desestabiliza a ordem técnica e corporativa.
As crianças híbridas: trauma, reparação e o fardo da adultização
O ponto mais sensível e potencialmente revolucionário da narrativa de Alien: Earth parece residir em seus protagonistas: crianças com doenças terminais que têm suas consciências transferidas para corpos sintéticos de adultos, os “híbridos”. Liderados pela personagem Wendy, esses jovens encarnam de forma dolorosa os conceitos de criança mal acolhida e adultização infantil.
Na psicanálise, a “criança mal acolhida” é aquela que, mesmo que por circunstâncias trágicas como uma doença, sente que sua existência é um fardo. As crianças da série, salvas da morte, não recebem um retorno a uma infância plena, mas sim um novo tipo de fardo. Elas são acolhidas não por amor incondicional, mas por sua utilidade potencial como soldados ou cobaias. Seus novos corpos, fortes e adultos, são uma negação de sua identidade infantil, uma armadura que as isola e as transforma em ferramentas.
Isso nos leva diretamente à adultização infantil. Essas crianças são forçadas a pular a etapa fundamental do desenvolvimento psicossocial da infância e adolescência. São-lhes dadas responsabilidades e corpos de adultos, sem a maturidade emocional para processar o trauma de sua doença, de sua “morte” e de seu renascimento como algo não totalmente humano. Este trauma é multifacetado: o da doença, o da transformação e, crucialmente, o da relação com um mundo adulto que não reconhece sua dor.
Aqui, as ideias de Sándor Ferenczi são particularmente potentes. Ferenczi argumentava que o trauma não reside apenas no evento violento em si, mas na negação e no silenciamento da experiência da criança pelo ambiente. As corporações, ao “salvarem” essas crianças para seus próprios fins, perpetuam uma “confusão de línguas”, oferecendo o idioma da utilidade e do poder no lugar do acolhimento e do cuidado, invalidando a realidade do sofrimento infantil.
A busca por reparação, um conceito kleiniano sobre a tentativa de reparar os danos causados aos “objetos internos”, pode se tornar o motor de suas ações. Contudo, é na relação que a verdadeira possibilidade de cura pode emergir.
A sugerida capacidade de Wendy de se comunicar com o Xenomorfo abre um fascinante campo de análise sob a ótica da psicanálise relacional. Autores como Stephen Mitchell e, especialmente, Jessica Benjamin, enfatizam que o eu se constitui na relação com o outro. Benjamin fala da necessidade de reconhecimento mútuo: a capacidade de reconhecer o outro como um sujeito separado e, ao mesmo tempo, ser reconhecido por ele.
Nesse sentido, a conexão entre Wendy e o Xenomorfo pode transcender uma mera aliança tática. Pode representar a busca por um reconhecimento que o mundo humano/corporativo lhe negou. Ambos são “outros”, instrumentalizados e caçados. Se eles conseguirem estabelecer um tipo de comunicação, de reconhecimento intersubjetivo, estarão criando um espaço relacional fora da lógica dominador/dominado. Seria uma reparação não apenas interna, mas intersubjetiva: a criação de um vínculo onde dois sujeitos, radicalmente diferentes, se reconhecem em sua alteridade e em seu sofrimento compartilhado.
Autor: Thiago Lira